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O Belo Hegemônico

De origem grega, a palavra hegemonia significa “comando”. Pode ser definido também como supremacia, domínio, poder que algo ou alguém exerce em relação aos demais. O termo é amplamente empregado por pensadores políticos em suas fundamentações teóricas.

O filósofo Gramsci afirmou que na hegemonia a concepção do mundo de um determinado grupo no comando é comumente adotada pelo grupo subordinado. Mesmo que essa concepção imposta não esteja em alinhamento com a vivência prática do grupo subordinado, pois essa incorporação é desprovida de consciência crítica e coerência. Mas o que isso tem a ver com o corpo?

O corpo é fruto de uma elaboração social, que para ser considerado belo e valoroso deve ser constituído de certos atributos. Atributos esses que são propostos através dos padrões de beleza de cada sociedade, variando em diferentes contextos.

Na sociedade contemporânea, a força das mídias tradicionais tem se perdido para o advento das redes sociais. O que antes era consumido de maneira passiva, hoje se modifica: como usuários somos mais do que apenas receptores de informação, mas também propagadores de conteúdo. Hoje, indivíduos ganham espaço nas telas e recebem status de fonte de informação pela decisão do público.

Relativamente recente na sociedade, o fenômeno do uso de redes sociais e sua influência tem sido estudados por diversas áreas do conhecimento. No contexto do corpo, redes sociais como o Facebook, Instagram e TikTok tem um papel importante na propagação de conteúdos sobre saúde, alimentação, emagrecimento e fitness.

Na era da exposição e do compartilhamento, não é incomum que aqueles corpos considerados ideais tomem um espaço de glória. As novas mídias exaltam e reforçam os padrões de beleza vigentes, criando a noção de que essas formas corporais são as corretas, independente da individualidade de cada ser. Em homens e mulheres, o uso frequente de redes sociais é preditor de maior insatisfação corporal. Mas, esse assunto vai ser explorado para outro post.

Como Gramsci mencionou, na hegemonia não é necessária a coerência. Não importa que esse modelo de corpo seja inalcançável para a maioria das pessoas, o importante é tentar conseguí-lo. Afinal, o corpo é visto como algo passível de moldagem, perdendo sua função identitária pessoal do ser. A sensação remanescente é de que através do esforço pessoal e do mérito (o famoso foco, força e fé) é possível obter o corpo ideal. Este, por fim, seria o único capaz de fornecer o acesso aos poderes e louros de estar no padrão: sucesso, realização, saúde, felicidade e reconhecimento social.

A internalização do padrão estético é a incorporação deste valor ao ponto de modificar as atitudes e comportamentos pessoais. Estando latente esse desejo de se moldar ao padrão, a pluralidade do corpo que constitui nossa espécie é ignorada. Essa vontade de se ajustar ao modelo imposto não se limita apenas à pessoas com excesso de peso, mas se estende para qualquer um que se encontre fora do belo hegemônico contemporâneo: magro, jovem e definido. Quando esse corpo não chega, pois simplesmente não é possível para todos, ocorrem percepções de falha pessoal, insatisfação e sentimentos de inadequação.

Agora, eu questiono: a disputa pela soberania pela beleza é apenas entre pessoas no padrão e pessoas fora dele? Até que ponto podemos parar a discussão somente nos indivíduos auxiliam na disseminação desse ideal?

A fusão de interesses de três indústrias bilionárias definitivamente fomentam o principal eixo dessa discussão: estética, alimentos e farmacêutica. Afinal, as práticas comerciais e midiáticas que afetam a forma como as pessoas se relacionam com a comida e o corpo não começaram com o advento das redes sociais.

Enquanto influencers, blogueires e celebridades tem seu papel de responsabilidade na manutenção do belo hegemônico, seria superficial e incompleto parar as críticas por aí. A presença da tríade das indústrias citadas trabalha de forma ostensiva para perpetuar um sofrimento que é lucrativo para todes: o sofrimento de habitar um corpo que não corresponde ao que é esperado dele pela cultura e sociedade em que estamos inseridos.

Referências e créditos

ALVES, Ana Rodrigues Cavalcanti. O conceito de hegemonia: de Gramsci a Laclau e Mouffe. Lua Nova,  São Paulo,  n. 80, p. 71-96,    2010 .

ALVARENGA, M. Et al. Uso de redes sociais, influência da mídia e insatisfação com a imagem corporal de adolescentes brasileiras. J Bras Psiquiatr., Rio de Janeiro, n. 3, p 164-171, 2017.

REZENDE, F.A.C. et al. Comida, corpo e comportamento humano. São Paulo: IACI Editora, 2020.

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